Um bem precioso, entrevista com Beatriz Preciado

(Entrevista com Beatriz Preciado, feita por Nancy Garín e publicada no jornal Página/12, Argentina, em 18/02/2010. Tradução: Boca do Mangue)

Autora incontrolável, ativista política, irônica, direta e didática, ainda que fale de questões que todavia têm forte resistência no senso comum e no discurso dos meios de comunicação. Chama-se Beatriz Preciado, é espanhola, formou-se nos Estados Unidos e vive na França, mas o lugar de pertencimento tanto quanto o gênero são espaços muito difusos e mutantes em sua vida. Vê-la, ouvi-la falar, quase tanto quanto ler seus livros, já é por si só um espetáculo de iluminação. Para quem não a conhece, basta digitar seu nome no Youtube e se pode ver entrevistas e conferências ao longo dos anos com suas correspondentes mudanças físicas e teóricas. Para quem não a leu, aparecem ao longo dessa nota os três títulos que a tem colocado no topo do pensamento queer. Textos densos e teóricos, é certo, porém que, por sua vez, gentilmente permitem o acesso de leitores não especializados. Essa filósofa, difícil de classificar porque ela mesma vive se desmarcando, aos 20 anos andava  raspada pelas ruas de Paris, esperando que suas perguntas e entusiasmos fossem atendidos nada menos que pelo professor estrela Jacques Derrida, que finalmente lhe abriu as portas e a cabeça também. Agora, com seus 41anos brilha o elegante bigode que as injeções de hormônios e sua prática experimental com o próprio corpo lhe legaram. Ao longo dessa entrevista se nomeará a si mesma no masculino, como vem fazendo-o faz tempo, desde que renegou às categorias de mulher, lésbica e transexual para se definir. Nessa espécie de visita guiada por sua rota acadêmica que vai desde sua educação com os jesuítas em Burgos até a constituição desse casal explosivo que forma com a francesa, ex-prostituta e escritora, Virgine Despentes. “Eu tive um exílio frente ao feminino, depois à sexualidade lésbica e tive também um exílio frente à realidade transexual”.

Na origem, foi o vibrador

Primeiro foi seu livro Manifiesto contrasexual, que apareceu em 2002 e que ela mesma definiu em seu momento como “um elogio do ânus porque é o único órgão sexual universal”. Esse livro foi  isso e muito mais, um golpe duro e potente como um vibrador contra o olhar que entende como  normal tudo o que provenha da divisão em dois sexos e do modelo heterossexual. Esse Manifiesto, que a projetou ao mais alto da academia, era uma crítica ácida, uma desconstrução, para usar palavras de seu mestre Derrida, da naturalização do sexo e do sistema de gênero com o objetivo de “construir uma sociedade de equivalência”, de “sujeitos falantes” que estabelecerão relações sexuais de forma contratual. Ela propõe ali a formulação de um contrato sexual levando o sexo a esse terreno dos intercâmbios prévios e formais. E propõe, como conseqüência,  considerar como uma violação todas aquelas práticas sexuais que se realizem sem a assinatura desse contrato. Esse gesto deixa de lado a superestimada espontaneidade ou naturalidade (animalidade?) por um contrato racional. Preciado, além de correr o sexo dos lugares que costumava freqüentar,  naquele livro defende uma sexualização da totalidade do corpo, enquanto elabora uma teoria e uma prática das tecnologias do sexo onde a figura do vibrador ou prótese produtora do prazer não só desempenha um papel protagônico como é desmistificado já que, como ela mesma expressa, esse objeto de plástico “não imita o penis mas o substitui e o supera em sua excelência sexual”.

Nascida em Burgos, em 1970, estudou filosofia e bioética com os jesuítas, em Madrid, para continuar seu percurso da mão de grandes pensadores como Derrida, Agnes Heller, na Universidade New School for Social Research de Nova York. Realizou estudos sobre Teoria da Arquitetura na Universidade de Princeton, de onde saíram as primeiras linhas de Pornotopia, sua última publicação premiada pela editora Anagrama na linha de ensaio. Desde  meados dos anos 90, vive em Paris, dá aulas no departamento de “Técnicas do corpo”, de París VIII, onde trabalha sobre teoria do gênero e história da performance.

É famosa sua  parceria e seu relacionamento com a também ativista e escritora francesa Virginie Despentes, que este ano foi premiada pela crítica pelo seu livro Apocalypse bébé, onde partilha não só sua cotidianidade como sua paixão pela escritura e múltiplos projetos entre a pedagogia, o cinema ou simplesmente viver.

Burgos, ao norte da Espanha, não parece ser o melhor lugar para uma decolagem queer. O que e onde você estudou? Como foi o seu início?

– Durante muito tempo fui como um receptor passivo do sistema educativo. De vários sistemas educativos distintos, começando pelo sistema educativo espanhol. Porque nos anos 70, na Espanha e numa cidade como Burgos, minha educação não pôde ser outra coisa que conservadora em todos os sentidos. Logo fui estudar filosofia com os jesuítas, que me pareceram conservadores mas na verdade não o eram. A escola de filosofia da universidade central era mais conservadora que os jesuítas, que estavam em plena revolução da Teologia da Libertação liderada em Barcelona pelo teólogo Jon Sobrino, de quem hoje seus trabalhos sobre cristologia, eclesiologia e espiritualidade da libertação não têm permissão para ser ensinado em escolas católicas. Enfim, os primeiros momentos de intensidade política, nessa época, eu os vivi com os jesuítas. Claro, não se estava lendo filosofia pós-estruturalista nem Foucault, nem nada disso mas já estávamos vendo Spinoza e Marx.

– E a relação entre filosofia e ação que percorre toda sua vida e obra, é um legado do feminismo?

– Para mim, a filosofia nunca foi apenas uma prática teórica mas uma prática social e não é algo que aprendi com o feminismo. O feminismo de Madrid, nessa época, era um feminismo ilustrado, branco, heterossexual, muito mais conservador do que hoje em dia. Era-me impossível me aproximar para trabalhar ali como lésbica, questão com a qual já me identificava desde menina.

– Por que você deixou a Espanha?

– Dei-me conta de que não podia seguir numa situação de curto-circuito total e a única coisa que pensei foi “devo sair daqui”. Desde muito pequena nunca me identifiquei com um lugar ou país. Minha relação com o fora sempre teve a ver com a possibilidade de encontrar outro mundo. Então, solicitei uma bolsa Fulbright e fui para os Estados Unidos.

– Como foi esse encontro com a sociedade estadounidense em plena década dos 90, com pensadores como Agnes Heller e personagens do âmbito da militância como Jackie Alexander?

– Chegar aos Estados Unidos foi como começar do zero. Ali me encontrei em plena situação de proliferação dos estudos queer e uma expansão dos discursos extraordinária. Cheguei num momento em que as mudanças eram constantes: um dia te inscrevias nos Women’s Study, no outro dia o Women’s Study era Gay Study e, no dia seguinte, se chamava Queer Study, três dias depois o cartaz dizia: Postcolonialista. Refiro-me a esses anos posteriores às políticas da AIDS e da crítica às “políticas de identidade”. Então, todos os grupos políticos em Nova York estavam muito expostos. É um momento quase de duelo da política.

Eu, no início, fui ao departamento de Filosofia. Foi ali onde conheci Derrida e Agnes Heller.

– Além do estudo, imagino que aquilo seria um viveiro de experiências.

– Bom, de inicio fui à Rua 13 onde está o centro gay e lésbico de Nova York. Então eu era gay e lésbica. Fui ali para pegar todos os seminários com Derrida, Agnes Heller e conferências de Judith Butler, em pessoa. Porque, claro, a figura ali, realmente importante, era Butler. Para mim é uma pessoa fantástica. Uma bruxa branca do feminismo negro. De alguma maneira foi em suas aulas e conferências que me dei conta de que o que eu faria tinha um nome muito claro: Filosofia Política Feminista Pós-Colonial. Meti-me numa oficina de Sadomasoquismo lésbico, onde me encontrei com minhas colegas alemãs. Durante o dia nos juntávamos, líamos e discutíamos “Hegel na África” e, à noite, eu ia às oficinas de Sadomasoquismo.

Ali me dediquei, pela  primeira vez, a medir o tamanho dos chicotes, começando realmente a partilhar e a converter-me em um conhecedor das técnicas e de toda uma série de práticas. Para mim, que era relativamente jovem nesse momento, tudo isso devia ser feito com uma devoção absoluta.

Vivia num delírio constante. Por um lado lendo Derrida, por outro  com a teoria queer e, por outro, as oficinas Drag King, que seguia sem sequer perceber que a cultura drag king estava emergindo. Some broncas tremendas entre as feministas radicais pelo que nós estávamos vendo nas oficinas.

– Como nasce o seu primeiro livro, Manifiesto contrasexual e como a figura protagônica do vibrador fez seu ingresso ali?

– Comecei a trabalha muito jovem, de minhas primeiras aulas aos 19 anos na escola de medicina na cátedra de Bioética, com questões que para mim ainda não estavam muito elaboradas porque ainda estava num marco relativamente cristão. Nesse momento comecei a trabalhar sobre o transplante de órgãos e a escrever sobre o transplante de seio. Dali, sairá o que mais adiante será o Manifiesto contrasexual. Ali, refletia sobre a possibilidade de transplante de órgãos sexuais e da produção de hormônios sexuais que não existem. Um delírio que não tem nada a ver com o que estava vendo na faculdade nesse momento.

Manifiesto parece ter o selo Derrida no que se refere à desconstrução das práticas sexuais.

– Na realidade, é um texto que escrevi para Derrida. Trabalhando com ele sobre Santo Agostinho e sobre o que, falando com ele, poderia se descrever como um problema de transexualidade em Santo Agostinho, sua conversão como transexualidade. Derrida, nesse momento, nos Estados Unidos era uma espécie de estrela de rock. Eu estava com a minha cabeça raspada e minha pasta, esperando dia a dia diante de sua porta para lhe dizer… por favor senhor… blabla. Até que efetivamente um dia ele me diz: “Bom, o que você quer”. Estando na França, aparece a possibilidade de fazer um curso de Teoria da Arquitetura. Derrida, que é um louco, me levou a isso.

– O que tem a ver a sexualidade com a arquitetura?

– Eu estava estudando sobre a corporalidade e mais especificamente a história das tecnologias, pensar o corpo, o gênero como tecnologia. Derrida me manda a Princeton, ao departamento de Teoria da Arquitetura, não pela arquitetura em si mesma mas para pensar  mais além da construção. Esse passo que parece muito louco é fundamental em minha trajetória. Pensemos que todo o discurso feminista estava montado em torno de toda essa espécie de cântico da “construção social e cultural da diferença sexual”. Quando chego ao departamento de arquitetura, os arquitetos, cada vez que falo de gênero como construção sociocultural, me perguntam a que tipo de construção me refiro. O que é lógico, pois é próprio da linguagem da arquitetura, não? A partir disso me ponho a pensar que talvez seja possível que tenha que me dedicar a fazer uma história mais específica das técnicas de construção de gênero. Qual é a relação mais clara entre arquitetura e sexualidade como um conjunto de técnicas de construção. Por isso me dediquei a prestar atenção às próteses sexuais, especificamente os vibradores. Interessam-me porque de alguma maneira são como órgãos indefiníveis, em termos de Derrida. Não são propriamente órgãos, mas tampouco são objetos. Pego técnicas muito precisas dos historiadores da arquitetura para fazer a história do vibrador, como parte da história das tecnologias da sexualidade.

– Como reagiram tuas companheiras feministas?

Na história do feminismo, o surgimento dos vibradores constituiu toda uma polêmica, sempre foram vistos como a “redenção do sexo masculino” que ao final oprime etc, etc. E a verdade é que não era assim nas práticas que eu tive em minha vida.

– As versões do mesmo livro não são iguais em cada idioma no qual foi traduzido.

O Manifiesto é um texto multilíngüe e que não é igual, não é o mesmo em cada versão. Aqui se agrega um elemento a mais para mim que é constitutivo: pensar também essa sexualidade em relação com o exílio. O não território ou a multiplicidade de territórios possíveis ou a tradução como modo especifico de comunicação e o exílio como possibilidade sexual.

– Teu último livro, Pornotopia, também pega elementos da arquitetura mas esta vez associadads com as publicações pornográficas.

Sim, esse livro nasce da análise da revista Playboy dentro do marco das tecnologias do sexo, já que a pornografia é uma tecnologia visual. Aí me dou conta de que as revistas publicadas entre 1954 e 1965 reproduzem sempre o mesmo plano arquitetônico, estão dedicadas à produção desse novo espaço de solteiro, um âmbito desenhado para o prazer masculino.

***

Beatriz Preciado consegue driblar toda classificação desde a roupa que usa até o modo como fala e a sensualidade que emana. Parece de volta de tudo e, por sua vez sempre, buscando. Cada vez que se lhe pergunta por aquela experiência com a testoterona, que segue consumindo em pequenas doses, responde sem se incomodar com a insistência com que reaparece em cada entrevista: “Não, não o fiz para me converter em homem. Aquela intoxicação voluntária sem protocolo médico significou que meu gênero não pertence nem a minha família, nem ao Estado nem à indústria farmacêutica. Foi uma experiência política.”

– Se você tivesse que escolher, o que destacaria como memorável desses dias de consumo de hormônios, de experimentação mutante? Dito de outro modo, que sentia?

É uma droga que me deixa lúcido, enérgico e desperto. Posso comparar com o que senti na primeira noite que fiz amor com uma garota. Por que será que esses aspectos são considerados atributos masculinos?

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